Cambra (Vouzela), por caminhos medievais ao encontro do lobisomem e das mulheres da manteiga

O que acha de percorrer comigo um trilho medieval repleto de surpresas e de rara beleza natural? Venha daí e certamente não se vai arrepender.
O percurso proposto (PR 6) inicia-se no Largo do Cruzeiro, no centro da localidade de Cambra, no concelho de Vouzela (ver indicações sobre como cá chegar na minha publicação de 15/03). Trata-se de um itinerário circular, de grau de dificuldade médio, numa extensão de 8 kms. (aceder ao mapa aqui).
Logo a começar, o primeiro elemento a chamar a nossa atenção é o solar de Cambra (séc. XVII) existente no largo. Constituído pela casa e capela anexa, possui um brasão que tem tanto de exuberante quanto de desproporcionado, pretendendo transmitir uma imagem de poder e prestígio, bem ao gosto da chamada "corte na aldeia".

Seguimos em direção à povoação de Cambra de Baixo, envoltos pela verdejante paisagem rural, quando deparamos com um inusitado aqueduto em pedra. Em vez de uma vulgar levada, a sabedoria popular erigiu uma invulgar estrutura sobrelevada destinada ao transporte de água.
Dirigimo-nos agora em direção ao rio Alfusqueiro. O seu nome é um legado da presença dos árabes na região e abre-nos a porta para uma viagem pelos antigos e misteriosos tempos medievais. Nem de propósito, neste ponto a travessia do curso de água faz-se utilizando antigas poldras. Numa época em que as pontes não abundavam, as poldras - blocos de granito aparelhado dispostos em linha e fixados no leito do rio - permitiam a passagem entre margens a pé enxuto.

Um pouco mais à frente, nova surpresa se nos depara: a torre medieval de Cambra. Localizada num vale fértil, na confluência dos rios Couto e Alfusqueiro, esta imponente torre fortificada foi construída nos finais do séc. XIII. Tendo servido de residência aos senhores feudais, o seu aspecto militar tinha por intento reforçar a imagem de domínio dos seus proprietários sobre a terra e as gentes. Emoldurada por um belo e bem cuidado jardim/parque infantil, pena é que a torre não possua cobertura e se apresente com uma das fachadas em ruína (a merecer intervenção das autoridades competentes).
O próximo destino vai levar-nos a um local que faz jus à ideia que a idade média foi a época das trevas: a Cova do lobisomem. Situada na margem do rio Couto e rodeada de um ambiente natural cheio de beleza e mistério, a gruta surge associada ao misticismo da lenda da maldição dos sétimos filhos e da mudança de nome.
Mais à frente, numa curva do caminho, surge-nos inopinadamente uma casa grande, em ruinas, tendo uma placa a informar tratar-se da fábrica da manteiga/queijo (!?). Construída no início do séc. XX, a sua localização em tão remoto lugar deveu-se ao facto da produção necessitar da existência das condições de frescura do lugar, associada à existência de água em abundância no rio que lhe corre aos pés. Com o surgimento das câmaras frigoríficas a empresa entrou em declínio. Um aspecto a salientar é o facto da manteiga lá produzida ser transportada em latas, à cabeça, por mulheres que atravessavam a serra do Caramulo, até à distante estação ferroviária de Torredeita (antiga linha do Vouga), daí seguindo para diversos destinos. Sem dúvida uma autêntica epopeia que retrata bem a fibra das gentes beirãs.

Encaminhamo-nos para o parte final do percurso. Ladeando o trilho frondosos castanheiros e carvalhos, alguns deles centenários, acompanham os nossos passos. Mais abaixo, as águas cristalinas do rio Alfusqueiro seguem por entre um bosque de amieiros e salgueiros. É neste cenário idílico que nos surge a bela ponte de Confulcos. Construída em pedra no séc. XVII, em substituição da anterior de madeira, o seu tabuleiro encontra-se em más condições de conservação, a merecer a devida intervenção.

Não poderíamos terminar este itinerário sem degustar a gastronomia beirã. São uma panóplia de sabores únicos a que se juntam os sábios saberes de antigamente. Absolutamente imperdível. Bom proveito!